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O voo de Cília

Cecília adorava o açougueiro, e não era apenas pelo filet mignon que ele vendia. Acreditava que seu coração estava reservado para Dagoberto, apesar da contrariedade da mãe, Hortência, que desejava vê-la trocar alianças com o filho do dono da joalheria: – Filha, o teu futuro está ao lado do Antônio. Ele fez curso técnico em joalheria, logo, logo, vai herdar a loja do pai. É bonitão, educado, apaixonado por ti e, o mais importante, tem tudo pra te dar um futuro tranquilo e seguro – insistia ela. Na cidadezinha de pouco mais de 10 mil habitantes, o destino de 80% das mulheres era o mesmo: concluída a escola, ficavam morando com os pais até se casarem, geralmente com garotos da comunidade, com quem conviveram sempre, desde a infância. Por isso, se dizia que em Três Torres, depois de anos frequentando a mesma escola, se divertindo nas mesmas festinhas no Caça e Pesca, fazendo o tempo passar em bate-papos na praça central e sorvendo milhares de casquinhas na sorveteria do Zito, todos tomava

Onde está o Heinzen?

O Heinzen sumiu naquele sábado. Não apareceu sequer para a tradicional partida de bolão da manhã, no salão do Heringer, a dois quilômetros da sede do município. Estranho, logo ele que era um dos frequentadores mais antigos e que sempre chegava cedo aos encontros. O "Magrelo", como a turma chamava o seu Chevette 85, não foi visto rodando pela cidade, deixando triste até o Fusca 76 do Haas, ao lado do qual o Heinzen sempre estacionava defronte ao salão. Sequestro? Assassinato? Os boatos logo se espalharam, porque boatos, você sabe, voam em cidades pequenas como aquela, na qual os 3 mil habitantes se conheciam pelo nome (ou melhor, pelo sobrenome). Mas quem iria querer sequestrar aquele alemão simples, que tirava sustento do pouco que produzia com a mulher em sua propriedade de três hectares, que abrigava quatro vacas leiteiras, meia dúzia de galinhas, três porcos, dois cachorros e três pirralhos? – Pode ter sido vingança! – o pessoal gelou quando ouviu o Lauxen sugerir isso. N

A última onda

Todo final de tarde o ritual era o mesmo. Guillermo esperava o sol começar a se refletir dourado no mar junto aos molhes para remar com sua prancha rumo às ondas, que ele não abria mão em seu período de férias. Executivo de uma multinacional, solteiro, na faixa dos 30 anos, ganhava o suficiente para surfar em qualquer praia do mundo que desejasse: Indonésia, Havaí, os melhores picos estavam ao seu alcance. Bastava passar o cartão de crédito, comprar a passagem e pegar o avião. Mas ele desprezava esses points, preferidos por 10 entre 10 surfistas. Não por temer suas traiçoeiras ondas, nem por se julgar incapaz de dominá-las. Preferia jogar a prancha sobre a carroceria de sua quatro-por-quatro, dirigir pouco menos de 200 quilômetros e flutuar sobre as formações imperfeitas da praia que ele considerava sua. Algo especial o atraía para aquele balneário ao norte, que começou a frequentar com os pais ainda na pré-adolescência. O casal decidiu comprar uma casa na praia "como investiment