Onde está o Heinzen?

O Heinzen sumiu naquele sábado. Não apareceu sequer para a tradicional partida de bolão da manhã, no salão do Heringer, a dois quilômetros da sede do município. Estranho, logo ele que era um dos frequentadores mais antigos e que sempre chegava cedo aos encontros. O "Magrelo", como a turma chamava o seu Chevette 85, não foi visto rodando pela cidade, deixando triste até o Fusca 76 do Haas, ao lado do qual o Heinzen sempre estacionava defronte ao salão. Sequestro? Assassinato? Os boatos logo se espalharam, porque boatos, você sabe, voam em cidades pequenas como aquela, na qual os 3 mil habitantes se conheciam pelo nome (ou melhor, pelo sobrenome). Mas quem iria querer sequestrar aquele alemão simples, que tirava sustento do pouco que produzia com a mulher em sua propriedade de três hectares, que abrigava quatro vacas leiteiras, meia dúzia de galinhas, três porcos, dois cachorros e três pirralhos? – Pode ter sido vingança! – o pessoal gelou quando ouviu o Lauxen sugerir isso. Não era à toa que o Lauxen era conhecido como Zangado entre os amigos. Sempre tinha algum comentário depreciativo a fazer, ou um pensamento pessimista para expressar. Pesava contra o Heinzen o fato de ser meio "assanhadinho", como costumavam dizer. Seu casamento quase afundou há alguns anos, quando a Gertrude descobriu que ele andava “saindo com outra”. O que poucos sabiam é que ele tinha se envolvido, há pouco tempo, com uma mulher meio misteriosa de uma localidade vizinha, revelou para espanto geral o Weber, seu amigo mais chegado. – Mas ela é solteira – emendou ele, rapidamente. – Quem iria querer se vingar do Heinzen? – Mas a Gertrude, mulher do Heinzen, é casada. Com o Heinzen – largou o Lauxen, provocando gargalhadas nervosas. Teria o Heinzen sofrido uma recaída e corrido atrás dela?, questionaram. Cogitaram até de acionar o delegado, residente em uma cidade próxima. Porém, desistiram, pois ele teria de percorrer 40 quilômetros em chão batido. Quando chegasse, poderia ser tarde demais para o Heinzen. O relógio já avançava para além das 10 da manhã. Decidiram, então, investigar "por conta". Saiu o grupo de 12 amigos, largando a disputa do bolão pela metade e o Heringer sozinho, tomando conta do salão. – Já vi que vou ter de tirar a cerveja do freezer. Não ficou ninguém aqui para beber – suspirou Heringer, contabilizando as perdas. Com o Weber à frente, o grupo bateu na porta da casa do Heinzen. Como ninguém respondeu, fizeram o mesmo na janela do quarto do casal, quase entortando a veneziana. Nenhuma resposta. Silêncio absoluto. Dormindo não estavam, com certeza, porque o Heinzen era de acordar cedo, antes do despertar do galo, e o carro não estava na garagem. – Os bichos tão alimentados. Os pratos do Ligeiro e do Soldado pela metade e as tinas, cheias d'água – anunciou o Filter vindo do pátio dos fundos, seguido pelos vira-latas. Mas o mistério persistia. Em que buraco, raios, os Heinzen haviam se metido? Foi então que todo mundo se tocou para a praça. Sim, porque na cidade, discussões sobre política, futebol e agora sobre o misterioso sumiço da família Heinzen sempre ocorriam na praça, o ponto de encontro local. Até o prefeito e o padre apareceram. Foi quase uma hora de debates, teorias e suposições, umas 40 pessoas reunidas. Mas o horário do almoço, servido habitualmente ao meio-dia, porque na cidade ninguém gostava de "comer tarde", se aproximava, e o pessoal começava a se dispersar. Afinal de contas, de nada adiantava ficar na praça angustiado, sem notícias do amigo, e passando fome. O Weber, que ficou por último, já se preparava para colocar a chave na ignição do seu Corcel quando avistou um carro levantando poeira na pequena estrada que ligava a cidade à BR. Decidiu esperar. A poucos metros, conseguiu identificar o veículo desconhecido que chegava. Era um Escort. "Bonitaço", pensou, ao ver as rodas esportivas, os vidros totalmente escuros e a pintura metálica "que lembrava os carros de propagandas de TV", admitiu mais tarde, ao descrever a cena para os amigos. – Ainda chegamos a tempo pro almoço – disse o motorista do Escort, ao baixar o vidro da janela. Era o Heinzen. Ao seu lado, a Gertrude, em seu melhor vestido, era só sorrisos, e os três pirralhos não paravam de pular no banco de trás de tanta felicidade. – O que aconteceu, homem de Deus? – perguntou Weber. – Tava toda a cidade preocupada sem notícias de vocês. – Decidi trocar de carro e viajei cedinho até a cidade aqui do lado pra negociar com um vendedor que conheci na última vez que fui no médico que trata da minha coluna. Levei a molecada e a mulher porque eles queriam experimentar a novidade antes de eu comprar. – E precisava ir assim, escondido, sem avisar ninguém? – Tinha meu dinheiro contadinho, e se eu falasse pra alguém e algum invejoso corresse na frente e melasse o meu negócio? Sabe como é, cidade pequena como a nossa, notícias se espalham rápido. O segredo é a alma do negócio – filosofou o Heinzen, despedindo-se do Weber com um abano, um sorriso irônico e um certo ar superior, de quem agora tinha a convicção de que possuía o segundo melhor carro da cidade, só perdendo para picape do prefeito, comprada zero quilômetro meses antes. Deu duas aceleradas, sem tirar o carro do lugar, mas que fizeram o motor responder alto, potente. Em seguida, arrancou. – E ele nem me deixou dar uma sentadinha no banco do motorista pra espiar o carro novo – choramingou o Weber, solitário. Embarcou no Corcel e partiu, deixando a praça vazia.

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