O voo de Cília

Cecília adorava o açougueiro, e não era apenas pelo filet mignon que ele vendia. Acreditava que seu coração estava reservado para Dagoberto, apesar da contrariedade da mãe, Hortência, que desejava vê-la trocar alianças com o filho do dono da joalheria: – Filha, o teu futuro está ao lado do Antônio. Ele fez curso técnico em joalheria, logo, logo, vai herdar a loja do pai. É bonitão, educado, apaixonado por ti e, o mais importante, tem tudo pra te dar um futuro tranquilo e seguro – insistia ela. Na cidadezinha de pouco mais de 10 mil habitantes, o destino de 80% das mulheres era o mesmo: concluída a escola, ficavam morando com os pais até se casarem, geralmente com garotos da comunidade, com quem conviveram sempre, desde a infância. Por isso, se dizia que em Três Torres, depois de anos frequentando a mesma escola, se divertindo nas mesmas festinhas no Caça e Pesca, fazendo o tempo passar em bate-papos na praça central e sorvendo milhares de casquinhas na sorveteria do Zito, todos tomavam o mesmo rumo: o do tapete vermelho no longo corredor da igreja São Jorge, onde amigos se casavam com velhos conhecidos. Cília, como era chamada, fraquejou mais de uma vez. Em duas ocasiões, mais como forma de agrado à mãe e menos por amor a Antônio, chegou a namorá-lo. Na segunda vez, Hortência não escondeu a euforia ao ver o casal junto novamente: – Desta vez vai dar certo, fiz uma promessa a Santo Antônio que não vai falhar – comentou com o marido Heitor, enquanto tomavam café na varanda de casa. Heitor tirou os olhos do jornal, mirou Hortência por cima dos óculos que caiam na ponta do nariz, deixou escapar um "huumm" e voltou à leitura. Ela insistiu: – Já estou até vendo os meus netinhos correndo aqui no pátio. Heitor soltou um suspiro e interrompeu a leitura, irritado: – O problema é esse, Hortência. Você quer este casamento para lhe fazer feliz, não fazer a felicidade da sua filha. Deixa o coração definir por ela. Assim como fez comigo. Se eu não o tivesse seguido, não estaria casado contigo, mas sim com a Cássia, mulher do Romeu. Era isso, pelo menos, que a minha mãe queria. Hortência ficou chocada. Como assim, a "Cássia, mulher do Romeu?". Jamais Heitor havia lhe contado isso em quase 30 anos de casamento. Logo a Cássia, a amiga que frequentara a casa deles todo esse tempo, a quem Hortência confidenciara tantos segredos ? Por via das dúvidas, considerou prudente diminuir a rotina dos encontros entre os casais. Os amigos passaram a se visitar menos e os jantares semanais se tornaram mensais, sempre com a justificativa dada por Hortência de que não encontrava mais disposição para tanta festa. Apesar da empolgação de Hortência em ver Antônio como genro, Cília não sentia o mesmo entusiasmo. Ela gostava de Antônio. Aí é que estava o problema. Gostava da mesma maneira há anos, como colegas que foram, vizinhos de rua e amigos que eram. Dava risadas ao lado dele. Se divertiam juntos, passeavam com a turma pela região, privilegiada por uma natureza exuberante. Com Antônio, trocou o primeiro beijo, aos 14 anos, para "experimentar a sensação e matar a curiosidade", como descreveu mais tarde para a inseparável amiga Taís. – Foi debaixo da pitangueira, à beira do rio. Estava um dia tão lindo e ensolarado de verão. Me empolguei. O beijo foi bom, mas não me fez flutuar. Ainda procuro por aquele que me faça voar – disse Cília à amiga. Mas o local do primeiro beijo foi o mesmo que, dois anos depois, deixou uma marca invisível na face esquerda de Cília e uma cicatriz profunda em seu coração. Foi lá que acabou surpreendida por um tapa de Antônio, como reação por ela decidir que não queria mais namorá-lo. O coração de Cília disparava mesmo quando ela cruzava por Dagoberto, seus olhos verdes e rosto rosado. Não foram colegas por muitos anos, já que ele estudou na escola estadual da cidade, só passando para o colégio particular, o Franciscano, a partir do Ensino Médio. Embora se conhecessem (o açougue vendia a melhor carne de Três Torres, e era para lá que toda a cidade rumava aos sábados, para abastecer o churrasco do fim de semana), foi por meio do convívio na escola que Cília e Dagoberto se aproximaram. A ponto de Dagoberto roubar-lhe um beijo na festinha no clube, em um sábado à noite. Depois disso, misteriosamente, se distanciou. Trocavam alguns olhares rápidos, mas ele não tomava iniciativa. Nem ela, geminiana tímida, que já começava a imaginar: – Aposto que ele detestou meu beijo, por isso se afastou. Também, me pegou desprevenida na festa, eu não estava preparada – pensava. Sem esperança de conquistá-lo, Cília cedeu à segunda investida de Antônio, que diferentemente do rival, era ousado, insistente e não desistia dela. A esta altura, a cicatriz do coração já havia fechado e a garota o perdoou. Viveram por mais oito meses a rotina de um segundo namoro, até o dia em que Cília decidiu sair do casulo, seguir o coração, como dizia o pai, e procurar a felicidade. Desta vez, precavidamente, chamou Antônio a sua casa. Na frente dos pais, comunicou que a relação entre os dois terminava naquele dia de setembro e que não haveria uma terceira chance para ambos. Nem ouviu os apelos da mãe e do namorado e saiu porta afora. Seguiu por três quadras, naquele domingo quente e de ruas vazias, chorando cabisbaixa, mas disposta a procurar Dagoberto e declarar o seu amor. Nem percebeu que, na mesma calçada, ele caminhava em sua direção. Só se deu conta do que acontecia quando, pela segunda vez, teve um beijo roubado pelo açougueiro, ali mesmo, à sombra do sobrado da pizzaria. Era uma iluminada tarde de primavera. E Cília finalmente voou.

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