A última onda

Todo final de tarde o ritual era o mesmo. Guillermo esperava o sol começar a se refletir dourado no mar junto aos molhes para remar com sua prancha rumo às ondas, que ele não abria mão em seu período de férias. Executivo de uma multinacional, solteiro, na faixa dos 30 anos, ganhava o suficiente para surfar em qualquer praia do mundo que desejasse: Indonésia, Havaí, os melhores picos estavam ao seu alcance. Bastava passar o cartão de crédito, comprar a passagem e pegar o avião. Mas ele desprezava esses points, preferidos por 10 entre 10 surfistas. Não por temer suas traiçoeiras ondas, nem por se julgar incapaz de dominá-las. Preferia jogar a prancha sobre a carroceria de sua quatro-por-quatro, dirigir pouco menos de 200 quilômetros e flutuar sobre as formações imperfeitas da praia que ele considerava sua. Algo especial o atraía para aquele balneário ao norte, que começou a frequentar com os pais ainda na pré-adolescência. O casal decidiu comprar uma casa na praia "como investimento". A família gostou tanto do tal investimento que nunca mais o deixou. Gui cresceu vendo as ondas quebrarem contra as pedras. Era capaz de contá-las de olhos vendados e mesmo sem escutá-las. Apenas por senti-las. Filho único e com os pais já falecidos, Gui era dono desta casa e de outros dois imóveis, um apartamento herdado em uma cidade serrana, para o qual pouco ligava, e a cobertura na qual residia, na Capital. Em seus 20 dias de férias anuais (sim, porque na sua empresa, executivo nunca tem tempo para tirar um mês inteiro de descanso), todo o verão, era para o refúgio frente ao mar que sempre retornava. Naquela tarde, porém, o ritual de Gui, que começou a surfar aos 14 anos influenciado pelo brother Kinho, que conheceu naquelas areias, foi um pouco diferente. Enquanto terminava o alongamento antes de entrar na água, como a procurar algo, contemplou o mar, que parecia estranhamente calmo, pouco propício ao surfe. As ondas alcançavam a beira da praia quase sem força, algo incomum à época. Gui se ajoelhou, curvou o tronco duas vezes com as mãos à frente, tocando a areia, como se saudasse o mar. Recuou quatro passos, apanhou a prancha e começou a remar em direção aos outros surfistas, que àquela altura brigavam para tentar encaixar uma boa série, difícil em um dia de ondas tão baixas. Junto ao peito deitado sobre a prancha, Gui carregava uma pequena caixa, semelhante a um baú de alumínio. Abriu a caixa e despejou o conteúdo de seu interior no mar. Eram cinzas. As cinzas do brother Kinho, que foi o seu companheiro e parceiro fiel não apenas na paixão pelo surfe, mas o homem que ele amou, por quem foi amado, e com quem dividiu os melhores e mais apaixonantes momentos da vida. – Fique em paz, meu querido, neste que era o nosso lugar especial – despediu-se Gui, antes de começar a surfar a onda que se aproximava. Diferentemente das demais naquele dia, esta vinha cheia e consistente. Manobrou até o fim a última onda naquela praia. Nos poucos segundos que permaneceu em pé na prancha até encalhar na areia, a água que molhava seu rosto se misturou às lágrimas: – Nunca mais volto para cá – encerrou. Solitário, Gui terá de seguir em busca da onda perfeita, em outra praia, bem distante dali e de suas lembranças. Talvez na Indonésia ou no Havaí. A onda poderá ser perfeita, mas jamais será igual novamente o prazer de surfá-la.

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