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O enigma de Alice

Havia algo de enigmático no sorriso de Alice. Pelo menos era isso que seu avô sempre dizia enquanto brincava com ela e a colocava em seu colo. Aí, repentinamente, o vovô se levantava e saía para um lado dando gargalhadas, enquanto Alice corria para o outro para contar à Angélica: - Mããããeee, o vovô disse que meu sorriso é enidi...enidimático. O que é enidimático? E todos riam – mamãe, vovô, vovó. Só Alice não ria muito, porque continuava sem entender direito o que significava enidimático.  – Não é enidimático, meu amor, é enigmático – dizia a mãe, reforçando o G mudo. – Significa misterioso, filha, você sabe o que é misterioso? Um dia você vai entender.   Anos depois, havia algo de enigmático na tristeza de Alice, bebendo um drinque no balcão daquele pub, com a companhia apenas do copo de pura vodka, com quem costumava desabafar nas noites de solidão, que eram quase todas. Deixara o sítio onde vivia com os avós e a mãe repentinamente, aos 16 anos, sem aviso e sem alarde, em uma gelad

Encarando a velhice

O que pode haver de bom na velhice? Essa pergunta martelou na minha cabeça durante toda essa terça-feira, dois dias antes de eu completar 56 anos, e vem me acompanhando já faz um bom tempo. “Que, Renato, vai dizer que tu está te achando velho aos 56 anos?” Não, não estou me achando velho, mas sei que, por mais contrassenso que pareça, quanto mais o tempo passa mais a velhice mostra fôlego, boa forma e está próxima de me alcançar, a passos firmes e velozmente. Não adianta eu tentar escapar. Tenho buscado a resposta para esta pergunta desde que entrei pela primeira vez no consultório da terapeuta, sentei e disse antes de qualquer coisa: - Estou aqui para que tu me ajude a encarar a velhice. Aposto que que minha terapeuta tem a resposta para isso, mas não vai me dizer, claro. Como toda a terapeuta, vai deixar para que eu encontre por conta própria. Poderia perguntar para as pessoas idosas com quem convivo. “Afinal, o que há de bom na velhice”? Sei que todas terão boas respostas a me dar,

A greve

Foi então que os funcionários da terceirizada prestadora de serviços do condomínio resolveram parar. Cruzaram os braços. Pouco importava se a empresa alegava problemas com a pandemia, perda de clientes e dinheiro, precisando demitir para se “ajustar ao novo momento”. Ficar durante semanas 12 horas consecutivas na portaria, com apenas uma hora de intervalo para almoço, e somente 12 horas de repouso, não estava dando mais para suportar. As folgas haviam sido canceladas. O chefe garantiu que seria temporário, mas este temporário virou permanente. A turma da segurança externa fez o mesmo. Parou. Mais de uma vez teve que trazer de casa peças para substituir na moto, porque senão a moto simplesmente não andava e, como a empresa não tomava providências, como fazer a ronda? O pessoal da limpeza e da jardinagem aderiu. Não havia luvas para o trabalho, e os moradores reclamavam que o saguão “cheirava mal”, sem que os funcionários pudessem explicar que o supervisor trocara a marca do limpador d

É tempo de viajar

Hoje escalei sozinho uma montanha no Tibete. Do topo, apenas com a melodia do vento como testemunha, mirei o infinito, e lágrimas congelaram em minha face. Há dois dias, eu desembarcava em uma praia na Normandia, e essas mesmas pernas que me transportaram ao cume e agora quase não as sinto, paralisadas pelo frio e a emoção, foram ágeis o suficiente para me fazerem desviar das balas que o inimigo atirava contra mim sem dó. Vi dezenas de companheiros fenecerem tombando ao meu lado, e dessa vez, meu choro foi de tristeza. Preciso desopilar e aliviar essa tensão. Amanhã, quem sabe hoje mesmo, estarei em Nova York, em um teatro na Broadway, assistindo a um musical e me deslumbrando. Talvez Les Misérables, de Victor Hugo? De preferência, ao lado da minha amada, que poderia ser a Capitu, com o perdão e a licença do Bentinho e de Machado de Assis. Pararemos em um café, caminharemos muito juntos, conversaremos e, sem nos dar conta, chegaremos a Santa Fé, onde Eri

A noite que nunca acabou

" Como ousa, como ousa!". Imagino que os grandes Pelé e Zico, dois ícones da camisa 10 dos campeões mundiais Santos, em 1962 e 1963, e Flamengo, 1981, devem ter dito isso, ao menos pensado, naquela madrugada de 11 de dezembro de 1983. A milhares de quilômetros de suas casas em Santos e no Rio, na fria Tóquio, o atrevido camisa 7 de apenas 20 anos do Grêmio, Renato Portaluppi, com dois gols desmontava a divisão punzer alemã do Hamburgo e levava o clube gaúcho ao maior título de sua história: o Campeonato Mundial Interclubes. "Como ousa, como ousa", podem ter repetido eles. Como que um clube fora do eixo Rio-São Paulo, na ponta do Brasil, da desconhecida internacionalmente Porto Alegre, poderia se atrever a tanto? Até então, apenas Santos e Flamengo haviam obtido essa glória entre clubes do Brasil. O Grêmio de Renato abriu caminho, colocou Porto Alegre no mapa e quebrou a hegemonia dos timaços de Pelé e Zico. Depois do Grêmio, vieram outros... E eu presenciei tudo

"À P... QUE OS PARIU", pobre Brasil

Na entrevista que deu pra Carta Capital na semana passada, o candidato do PDT à presidência da República, Ciro Gomes, bem ao seu estilo, mandou os "lulopetistas fanáticos" à "puta que os pariu". Tá lá, entre o 39° e o 41° minuto. Se quiser, vai lá no YouTube pra confirmar. Se o lulopetismo fanático, como todo fanatismo, é nocivo, convém ressaltar que boa parte da entrevista o Ciro passou dando pau no Lula e no PT, não só nos "lulopetistas fanáticos". Feita essa introdução, pra mim fica cada vez mais claro. Ciro, que tem como projeto pessoal ser um dia presidente da República (e se isso não ocorrer eu imagino ele ao final da vida, num manicômio, com uma camisa-de-força, sendo carregado esperneando gritando contra o PT, às vezes parece um bolsonarista repetindo o tempo todo "mas e o Lula, mas e o PT"?), já definiu como estratégia se deslocar totalmente do PT. Ele faz uma aposta. É uma aposta arriscada, mas é uma aposta. Ser visto como opção interes

O voo de Cília

Cecília adorava o açougueiro, e não era apenas pelo filet mignon que ele vendia. Acreditava que seu coração estava reservado para Dagoberto, apesar da contrariedade da mãe, Hortência, que desejava vê-la trocar alianças com o filho do dono da joalheria: – Filha, o teu futuro está ao lado do Antônio. Ele fez curso técnico em joalheria, logo, logo, vai herdar a loja do pai. É bonitão, educado, apaixonado por ti e, o mais importante, tem tudo pra te dar um futuro tranquilo e seguro – insistia ela. Na cidadezinha de pouco mais de 10 mil habitantes, o destino de 80% das mulheres era o mesmo: concluída a escola, ficavam morando com os pais até se casarem, geralmente com garotos da comunidade, com quem conviveram sempre, desde a infância. Por isso, se dizia que em Três Torres, depois de anos frequentando a mesma escola, se divertindo nas mesmas festinhas no Caça e Pesca, fazendo o tempo passar em bate-papos na praça central e sorvendo milhares de casquinhas na sorveteria do Zito, todos tomava