O enigma de Alice

Havia algo de enigmático no sorriso de Alice. Pelo menos era isso que seu avô sempre dizia enquanto brincava com ela e a colocava em seu colo. Aí, repentinamente, o vovô se levantava e saía para um lado dando gargalhadas, enquanto Alice corria para o outro para contar à Angélica: - Mããããeee, o vovô disse que meu sorriso é enidi...enidimático. O que é enidimático? E todos riam – mamãe, vovô, vovó. Só Alice não ria muito, porque continuava sem entender direito o que significava enidimático.

 – Não é enidimático, meu amor, é enigmático – dizia a mãe, reforçando o G mudo. – Significa misterioso, filha, você sabe o que é misterioso? Um dia você vai entender. 

 Anos depois, havia algo de enigmático na tristeza de Alice, bebendo um drinque no balcão daquele pub, com a companhia apenas do copo de pura vodka, com quem costumava desabafar nas noites de solidão, que eram quase todas. Deixara o sítio onde vivia com os avós e a mãe repentinamente, aos 16 anos, sem aviso e sem alarde, em uma gelada madrugada de julho, enquanto os adultos da casa dormiam aquecidos e tranquilos. Pegou carona com um vizinho que trabalhava como padeiro na cidade, distante poucos quilômetros. Esperou amanhecer e apanhou o primeiro ônibus até a capital, onde chegou após menos de quatro horas de viagem. Com o dinheiro que havia guardado em casa em uma caixa de sapatos no quarto, economizado das mesadas da mãe ou de prêmios e presentes dados pelos avós, poderia se manter por um tempo, mas precisava rapidamente encontrar um emprego. 

- Não sei fazer muita coisa, pouco aprendi vivendo por 16 anos enfiada naquele buraco, mas vou ter que me virar para arranjar “um trampo” – pensava sempre. 

 Ao desembarcar na rodoviária, a primeira parte da sua missão estava cumprida com sucesso e sem percalços. Em uma loja ali mesmo, comprou um celular novo e barato, para poupar suas economias. O smartphone mais moderno e cheio de recursos que ela tanto amava havia abandonado em casa, debaixo do colchão da cama. Descartou o chip antigo e sabia que, com número e aparelho novos, seria mais difícil alguém localizá-la. Até simpatizou com o número novo que recebeu, começando por uma sequência decrescente de 987 e terminando com uma crescente de 345. Calculava que tinha mais duas horas de vantagem até sua mãe bater na porta do quarto para acordá-la naquele sábado pela manhã – dia que costumava dormir até mais tarde sem ser importunada – e perceber sua ausência. Normalmente, só era chamada para o almoço, que costumava ser servido pontualmente 30 minutos após o meio-dia, para dar tempo de o avô retornar do encontro que fazia todas as manhãs de sábado com amigos no clube local. A preocupação com o horário era mais uma mania da avó, que preparava as refeições, sempre em fartura, e não se conformava “com o atraso para comer, quase no horário do café da tarde”, exagerava.

 Na rodoviária, Alice pegou outro ônibus para uma cidade do litoral, importante ponto turístico no Estado vizinho e onde sabia que poderia encontrar emprego e se manter incógnita mais facilmente. Mesmo que ainda estivesse distante a estação do ano na qual os turistas lotavam a praia, ruas, bares e restaurantes naquele balneário. Era a segunda parte de sua missão sendo cumprida. Se instalou em uma pousada não muito cara e procurou o único contato que tinha na cidade, Moira, uma amiga da escola três anos mais velha e que aos 17 havia largado os estudos para viver com o namorado, proprietário de um estúdio de tatuagem. Para esta amiga, com quem nunca perdera o contato apesar de não serem tão próximas - e ninguém lhe era -, Alice revelou, antes de sair de casa, o real motivo que a levaria a fugir. Recebeu apoio e foi imediatamente acolhida por Moira, que se dispôs a ajudá-la. E de fato a ajudou, junto com o namorado, dando emprego e ensinando à Alice os primeiros traços da arte de tatuar. 

 Desde a escola, Alice mostrava gosto pelo desenho e aptidão para a pintura, e isso facilitou para se tornar uma tatuadora talentosa e requisitada. Se deu tão bem na arte da pintura sobre a pele que, quatro anos após desembarcar naquele local desconhecido para esquecer o passado carregando apenas uma mochila, Alice se despedia de Moira e tomava um novo rumo. Conseguiu emprego em outra cidade, em um estúdio maior e com remuneração melhor. Continuava sem vínculos, solitária e triste, mas não se queixava. Havia sido uma escolha viver só, longe da família e evitando os relacionamentos amorosos.

 Enquanto bebia a última vodka daquela noite diante do balcão, Alice congelou ao ler, na tela do celular, a notícia de que a polícia havia detido, em um sítio de uma localidade no interior do Estado vizinho, um idoso acusado de pertencer a uma rede de pedofilia. Ao erguer novamente os olhos, Alice os fixou no espelho do bar à sua frente, quando se deparou com a imagem do avô a observá-la. Ele pareceu reconhecê-la, mesmo depois de tantos anos, e apesar do cabelo azul, das tatuagens e dos piercings nas narinas, sobrancelhas e orelhas da neta. Recuperada do susto, tentou aparentar tranquilidade, e sem se virar para trás, perguntou: – Como você me encontrou? – Eu podia encontrar você no momento que eu bem entendesse, mas não devia fazer isso – respondeu o velho. Depois de virar o gole final, ao olhar novamente na direção do espelho, Alice viu que o velho não estava mais lá. Levantou, deixou debaixo do copo uma nota para a gorjeta do barman e se dirigiu à saída. Já na rua, apertou uma tecla do celular que armazenava um número favorito. Apenas um toque depois, alguém atendeu a ligação, e Alice falou: 

 - Mãe, eu estou bem. 

 Então, Alice sorriu.

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