A greve

Foi então que os funcionários da terceirizada prestadora de serviços do condomínio resolveram parar. Cruzaram os braços. Pouco importava se a empresa alegava problemas com a pandemia, perda de clientes e dinheiro, precisando demitir para se “ajustar ao novo momento”. Ficar durante semanas 12 horas consecutivas na portaria, com apenas uma hora de intervalo para almoço, e somente 12 horas de repouso, não estava dando mais para suportar. As folgas haviam sido canceladas. O chefe garantiu que seria temporário, mas este temporário virou permanente. A turma da segurança externa fez o mesmo. Parou. Mais de uma vez teve que trazer de casa peças para substituir na moto, porque senão a moto simplesmente não andava e, como a empresa não tomava providências, como fazer a ronda? O pessoal da limpeza e da jardinagem aderiu. Não havia luvas para o trabalho, e os moradores reclamavam que o saguão “cheirava mal”, sem que os funcionários pudessem explicar que o supervisor trocara a marca do limpador desinfetante por outra de qualidade bem inferior, e estava racionando a entrega diária. Aí, eles passavam por incompetentes e pareciam não estar fazendo direito o seu trabalho. Isso era inaceitável. O síndico convocou uma reunião de emergência pelo grupo de whats do condomínio. Apareceram moradores das três torres, muito mais gente do que normalmente comparecia nas assembleias do condomínio. O síndico explicou a gravidade da situação e enquanto o proprietário da terceirizada não resolvia o problema, não havia porteiro para controlar o acesso na recepção e ninguém para recolher o lixo de 144 apartamentos. Além disso, a noite se aproximava e eles não teriam o segurança que faz a ronda na quadra e controla, à medida do possível, a entrada e saída de carros durante a madrugada. O que fazer? E não dava para deixar o zelador na portaria o tempo todo, como ele estava agora. Logo, apareceram os voluntários. A moradora do 501 da torre 2, policial federal, por sorte estava em férias e se dispôs a fazer a vigilância externa armada durante a madrugada. Tinha até uma moto, que deixaria estacionada na frente da portaria e que usaria para dar umas voltas na quadra de vez em quando. Ganhou apoio de um oficial da reserva do exército, que se dispôs a revezar com ela e se sentiu empolgado de “voltar à ativa e correr essa bandidagem à bala”. Não tinha moto, mas faria a ronda a pé, com o cachorro Fiel pela coleira. Para ficar na guarita da portaria surgiram mais de um candidato. O senhorzinho do 703 da torre 1 mostrou grande disposição para assumir o posto à noite, já que sofria de insônia mesmo e tinha a certeza absoluta que não iria “pregar o olho” durante o seu turno. Logo, mais de um aposentado também se colocou à disposição para esta tarefa, juntamente com a vizinha do 201 da torre 3, uma fuxiqueira de plantão que adorava saber da vida alheia. “Vou estar atenta ao entra-e-sai”, assegurou. Aí chegou a hora de decidir quem cuidaria da jardinagem e da limpeza. Os moradores que mantinham a horta comunitária no condomínio se reuniram numa roda, conversaram brevemente e um deles levantou a mão, se dirigindo ao síndico. “Deixa com a gente, adoramos mexer na terra”. Para cuidar da limpeza e do recolhimento do lixo, o consenso demorou. Ninguém parecia disposto, até que o síndico advertiu. “Em tempos de pandemia, não podemos facilitar, temos que cuidar ainda mais da higiene e da limpeza”. Levou uma resposta ríspida do morador do 1003 da torre 2. “Então limpa tu, já que a reponsabilidade é tua mesmo”. Quase foram às vias de fato, e só pararam com a discussão depois que as máscaras de proteção que usavam caíram de seus rostos em meio à confusão. O vizinho do 904 da torre 3, que até então assistia a tudo incrédulo e calado, pediu a palavra: “Posso colaborar com a limpeza, já que estou com o contrato suspenso na empresa e fico só me aborrecendo em casa”, disse, olhando para a esposa. Sentada ao seu lado, a esposa, que tinha grande influência sobre as vizinhas amigas com quem gastava horas livres conversando e tomando chimarrão no pátio do condomínio, tratou logo de convocá-las para ajudar na missão. Recebeu nenhum não, apena acenos positivos com as cabeças. Estava formado o batalhão para manter a vida dos moradores limpa e segura entre os muros, antes da terceirizada ser dispensada e uma nova, contratada.

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