Almoço de Natal

Não lembro de ter faltado alguma vez peru na ceia de Natal lá de casa. Meus pais – seu Orlando,um operador de máquinas de uma indústria metalúrgica, e Niles, uma dona de casa que eventualmente costurava para fora, mas que nos últimos anos de vida fez disso uma rotina porque a situação apertou – sustentavam os três filhos com esforço e dificuldades, mas não nos deixavam sem nada do que era básico. Eu, Mariana e Orlando Jr. terminamos o ensino médio estudando sempre em escola pública. Somente eu conclui uma faculdade, minha irmã casou cedo e seguiu o destino da maioria das meninas do bairro, virou dona de casa e mãe. Meu irmão herdou do pai não apenas o nome, mas também o gosto pela carreira no ramo da metalurgia. Trabalha até hoje na área e voltar a estudar não faz parte de suas prioridades. Antes, está colocar os dois filhos em uma faculdade, "nem que precise morrer trabalhando para pagar", levar a mulher para conhecer Foz do Iguaçu, "com aquelas cascatas que são a coisa mais linda", e comprar uma TV 3D de 42 polegadas, "daquelas que você encosta o dedo no dedo do artista do outro lado da tela". Mas voltando ao peru. Nem nos momentos de maior aperto financeiro, meus pais deixavam o ritual de, todo o 24 de dezembro, receber irmãos e sobrinhos em nossa casa para celebrar o Natal. Não era um grupo muito grande, 19 pessoas, mas a tradição se mantinha: minha mãe assava o peru, meus tios se encarregavam das bebidas e dos demais pratos. Era uma ceia simples, complementada com arroz branco, farofa, algumas frutas (abacaxi, pêssego e maçã, geralmente)e salada de maionese. Sempre igual, mas sempre com pessoas felizes. Gostávamos de estar juntos, reunir todo mundo, abrir os presentes, conversar. Houve um Natal, porém, que algo me chamou a atenção. Eu tinha 15 anos e minha irmã, dois anos mais velha, levou o primeiro e único namorado da vida – que depois se tornou marido – para celebrar conosco. Percebi que minha mãe estava pouco à vontade naquela noite. Parecia inquieta. Desconfortável. Seria o receio de perder a filha para aquele jovem que pela primeira vez participava da ceia com nossa família? Só anos depois ela confirmou minha impressão, quando conversávamos e me lembrei do fato, questionando-a. Então, ela confessou: com mais uma boca para alimentar naquela noite, e uma boca que não fechava, o peru ficaria no limite para todos. Havia um "acordo" informal entre as mulheres da família: ao perceberem que filhos ou maridos estavam comendo demais, sutilmente solicitavam para diminuírem a voracidade, para não fazerem os anfitriões passar vergonha por falta de comida. E as matriarcas eram muito escutadas (e obedecidas) naquela família. Um simples olhar, um pequeno gesto, eram suficientes. Todos logo compreendiam. Além disso, em 25 de dezembro, sempre almoçávamos em casa, apenas os cinco,uma exigência de meu pai para estar mais ao lado da mulher e dos filhos, e o cardápio era a sobra da noite anterior. Desta vez, havia a possibilidade de o peru requentado ser insuficiente para todos. Acho que, assim como eu, meu pai também se deu conta da aflição da mulher na noite anterior. Logo soube do que se tratava. Na manhã seguinte, estranhamente, pela primeira vez em anos, antes do almoço alegou um "mal-estar" e disse que não estava bem para comer. Ele nunca admitiu, mas tenho minhas suspeitas de que foi tudo uma encenação, uma atitude típica daquele homem sempre capaz de um gesto de generosidade em favor do próximo. – Deve ter sido aquela cerveja quente e ruim que teu irmão trouxe ontem à noite – brincou ele, ganhando um sorriso da mulher amada. Dona Niles logo lhe providenciou um purê de batatas com arroz, que ele comeu com a mesma vontade que os filhos terminaram de trucidar as sobras do peru, deixando somente a carcaça, diante de uma mãe feliz e aliviada.

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